Se liderança é um assunto que te interessa, você já deve ter se cansado de ouvir que liderança não é um dom, mas sim uma habilidade como qualquer outra que pode ser aprendida e ensinada. Simples.
Poderíamos terminar esse artigo aqui mesmo, mas há um problema.
Reflita por alguns instantes:
- Quantos(as) líderes você já conheceu que se preocupavam realmente em ensinar liderança para as pessoas que estavam próximas?
- Quantos(as) líderes você já conheceu que se preocupavam realmente em aprender e continuar aprendendo sobre liderança?
- Quantas oportunidades você tem agarrado para aprender e ensinar liderança? Quantas você tem deixado passar?
Infelizmente, a probabilidade de você não ter se satisfeito com suas respostas é significativa.
Isso acontece porque o conceito de que liderança não é dom e pode ser aprendida e ensinada é um conceito disseminado e compreendido pela grande maioria das pessoas que se interessam pelo tema, mas o número de pessoas que perdem a oportunidade de coloca-lo em prática no dia-a-dia é, talvez, ainda maior.
Trata-se de um conceito semelhante à ideia de “reciclar, reutilizar e reduzir”: temos total noção de sua importância, mas também temos uma grande dificuldade de praticá-la com disciplina.
E é por isso que ainda vale a pena falar sobre o assunto. Por que esse conceito é tão batido na teoria e tão raro no mundo real?
Dons e talentos existem, sim!
Apesar de ser um assunto de muito debate entre especialistas, a ciência parece concordar em um ponto: dons e talentos existem, sim.
Os conceitos de dons e talentos, porém, se distinguem entre diferentes pesquisadores e autores. Alguns autores consideram que as palavras têm o mesmo significado, outros as distinguem, mas sem parecer chegar em um consenso de distinção.
Nesse cenário, Francoys Gagné, professor e doutor em psicologia educacional, propõe o Modelo Diferenciado de Dom e Talento que busca diferenciar os dois conceitos e pode ser útil em nossa análise sobre liderança. O modelo é representado pelo seguinte framework:
Modelo Diferenciado de Dom e Talento, de Francoys Gagné
Gagné argumenta que todos os talentos são desenvolvidos a partir de aptidões naturais por meio do aprendizado influenciado por catalisadores internos e externos.
Os principais componentes do modelo de Gagné são:
Dons: são aptidões naturais que Gagné lista em quatro domínios e, segundo ele, são principalmente geneticamente determinadas. Os domínios são como segue:
- aptidões intelectuais: raciocínio, memória, senso de observação, julgamento e metacognição;
- aptidões criativas: inventividade, imaginação, originalidade e fluência;
- aptidões socioafetivas: percepção, comunicação (empatia e tato) e influência;
- aptidões sensório-motoras: sensibilidade (os sentidos), força, resistência, coordenação e outros.
Talentos: habilidades sistemicamente desenvolvidas que podem ser classificadas em campos, mais variados e numerosos que os domínios dos dons. Alguns exemplos de campos são:
- artes;
- esportes;
- tecnologia;
- lazer;
- negócios.
Os Processos de Desenvolvimento se referem aos processos de aprendizado e prática formais (como os processos que vivenciamos na escola) e informais (como quando uma criança aprende uma língua). Sem esses processos, dons não são convertidos em talentos.
Catalisadores Intrapessoais: várias características da pessoa influenciam o processo de aprendizado de maneira positiva ou negativa. Eles são:
- características físicas, como saúde;
- motivação e vontade;
- auto-gerenciamento;
- e personalidade (temperamento, auto-estima, adaptabilidade etc.).
Catalisadores Ambientais: Gagné nomeia quatro grupos de influências ambientais no desenvolvimento de talentos. São eles:
- meio (cultura, família);
- pessoas;
- provisões (programas, atividades, serviços);
Um último fator que influencia os catalisadores (intrapessoais e ambientais) e as habilidades naturais (dons) é o acaso. De modo mais importante, o acaso determina, através da recombinação de genes paternos, que tipos de superdotação uma criança possui e em que extensão.
O modelo de Gagné é interessante, pois nos mostra que pessoas possuem, de fato, aptidões naturais em diferentes domínios e que tais aptidões são mutáveis e podem ser moldadas em talentos desenvolvidos por meio de variados fatores.
É possível perceber que liderança é um conceito mais semelhante aos talentos, para os quais existem vários campos, do que aos dons, que se encaixam em domínios amplos.
É plausível, porém, inferir que determinadas aptidões naturais podem contribuir, de fato, como facilitadoras no processo de aprendizado em liderança de um indivíduo.
Aptidões socioafetivas podem ser especialmente positivas para alguém que está desenvolvendo suas habilidades de liderança.
Mindset Fixo x Mindset de Crescimento
Podemos associar o modelo introduzido por Gagné com o já popularizado conceito de Mindset, introduzido pela pesquisadora e autora Carol Dweck.
Em seus anos de pesquisa, Dweck descobriu que a visão que adotamos de nós mesmos afeta profundamente a forma como conduzimos nossas vidas. Essa visão que adotamos constitui o denominado Mindset.
Segundo a pesquisadora, existe um espectro de mindsets que uma pessoa pode ter e os extremos do espectro são representados pelo mindset fixo (no qual olhamos para nossas qualidades e habilidades como fixas e imutáveis) e o mindset de crescimento (no qual temos a crença de que nossas qualidades básicas são coisas que podemos cultivar através do esforço).
O mindset fixo leva a um desejo de se parecer inteligente e, portanto, a uma tendência de evitar desafios, desistir facilmente diante de obstáculos, ver o esforço como infrutífero ou sinal de fraqueza, ignorar feedbacks negativos úteis e se sentir ameaçado pelo sucesso dos outros. Como resultado, essas pessoas podem estagnar cedo e atingir menos do que seu potencial completo. Tudo isso confirma uma visão imutável do mundo.
Já o mindset de crescimento leva a um desejo de aprender e, portanto, a uma tendência de abraçar desafios, persistir em face a adversidades, ver o esforço como caminho para a maestria, aprender pelo criticismo e encontrar lições e inspiração no sucesso de outros. Não surpreendentemente, como resultado, essas pessoas chegam a níveis crescentes de conquistas. Tudo isso dá às pessoas com esse mindset um senso maior de vontade própria.
Fazendo um paralelo com o modelo de Gagné, é possível ver que o mindset de crescimento faz com que o indivíduo aja com protagonismo na transformação de aptidões em talentos.
Isso significa que pessoas com mindset de crescimento tendem a reduzir a influência de fatores externos, como o acaso, e moldar seus processos de desenvolvimento e seus catalisadores intrapessoais e ambientais para criar talentos de forma mais efetiva.
Líderes com mindset de crescimento, portanto, são aqueles que moldam a sua realidade para continuar aprendendo e desenvolvendo sua liderança e colocam o conceito apresentado inicialmente em prática no seu dia-a-dia.
Ok, mas por que é tão incomum encontrarmos líderes com mindset de crescimento que trabalham ativamente para desenvolver liderança como um talento? Bem, temos alguns palpites.
Saiba mais sobre padrões de mindset neste artigo.
O conforto de ficar parado
“Crianças, vocês deram o melhor de si e falharam miseravelmente. A lição é: nunca tentem.” e “Tentar é o primeiro passo em direção ao fracasso.” ~ Homer Simpson
Parece contra-intuitivo discutir tudo o que discutimos até aqui e perceber que poucas pessoas aplicam os conceitos apresentados; se existem qualidades e atitudes conhecidas de pessoas bem-sucedidas e todos nós buscamos o sucesso, é de se esperar que todos nós adotássemos tais qualidades e atitudes.
Há, porém, uma distinção crucial a ser feita aqui: buscar o sucesso é muito diferente de buscar o não-fracasso.
Homer Simpson compreendeu muito bem que, de fato, a forma mais segura de não fracassar é não tentar. Por outro lado, buscadores de sucesso sabem que a única forma de se alcançar o sucesso é tentando, mesmo que haja fracassos no meio do caminho.
O problema é que o ser humano foi biologicamente programado a ser averso ao fracasso. Para nossos ancestrais, muitas vezes o fracasso representava consequências graves e potencialmente mortais.
Os psicólogos cognitivos relacionam essa característica humana à chamada aversão à perda, que se refere a nossa tendência de preferir evitar perdas a adquirir ganhos equivalentes (é melhor não perder 5 reais do que ganhar 5 reais).
Alguns estudos sugerem que perdas nos afetam psicologicamente duas vezes mais que ganhos. Em outras palavras, o sentimento de perder algo é bem mais negativo do que o sentimento de ganhar a mesma coisa é positivo.
Compreender essa tendência humana nos ajuda a entender porque, tão frequentemente, deixamos as oportunidades diárias de aprender e ensinar liderança passarem.
Nesses momentos, talvez inconscientemente, somos movidos mais pelo não-fracasso do que pelo sucesso.
E, sinceramente, não é de se surpreender que isso seja especialmente verdadeiro quando o assunto é liderança, porque liderar é um comportamento que te expõem, demanda vulnerabilidade e humildade.
Segundo Simon Sinek, liderar vem com grandes sacrifícios pessoais. Grandes líderes são aqueles que distribuem todo o crédito quando tudo dá certo e que assumem toda a responsabilidade quando tudo dá errado.
Assim, escolher praticar, aprender e ensinar liderança todos os dias significa assumir grandes riscos diariamente e nossa aversão à perda faz com que prefiramos o conforto de ficar parado ao desconforto de tomar ação. Só é possível aprender e devolver habilidades de liderança se, diariamente, a vontade pelo sucesso exceder o medo do fracasso.
O Efeito Duning-Kruger e seu abismo assustador
Uma pesquisa realizada na Universidade de Cornell e publicada em 1999 relaciona o nível de confiança pessoal com o conhecimento naquele campo/habilidade.
Foi identificado que as pessoas, ao adquirir certa competência em determinado assunto, tendem a elevar muito o nível de confiança de um jeito que não é benéfico: elas passam a não enxergar o quão “incompetentes” ainda são.
Muitas pessoas estagnam nessa fase, se contentam com o conhecimento/autoconhecimento que tem, falhando em reconhecer a própria falta de habilidade e com uma “superioridade ilusória”.
Kruger e Dunning testaram suas hipóteses com alunos da Universidade de Cornell matriculados em matérias de psicologia, aplicando auto-avaliações de habilidade lógica, habilidade gramática, e humorismo.
Depois de confrontados com suas próprias notas obtidas nos testes, pediu-se aos avaliados que estimassem seu nível de habilidade em relação aos demais participantes. Neste momento o grupo mais competente em cada habilidade estimou seu nível corretamente, enquanto o grupo incompetente na habilidade superestimou o seu nível.
Na verdade, verdadeiros “especialistas” são aqueles que entendem que as coisas são muito complexas e cuja busca pelo conhecimento é constante e, a partir do momento que conhecem, estudam e aplicam mais e mais, conseguem ter um nível de confiança ideal para afirmar alguns pontos, ponderar outros e se colocar com mais firmeza.
Mas o que isso tem a ver com Liderança?
Imagine que o campo de conhecimento do eixo horizontal do gráfico do Efeito Dunning-Kruger seja liderança.
Com certeza, você conhece pessoas que se encontram do lado esquerdo do gráfico e possuem uma elevada confiança em seus ainda incipientes conhecimento e domínio sobre liderança. Na verdade, pode ser que você seja uma dessas pessoas.
Continuar aprendendo e desenvolvendo habilidades de liderança, porém, costuma ser uma atividade custosa. Quem escolheria seguir um caminho de diminuição de confiança em suas habilidades? É mais confortável permanecer super-confiante.
Esse caminho, contudo, é o caminho que todos os verdadeiros experts já percorreram. A jornada para se tornar um grande líder envolve manter uma postura de aprendiz, apesar dos efeitos colaterais dessa decisão.
Leia também o artigo “O que dirigir um carro e liderar uma equipe tem em comum?” para ver uma outra perspectiva sobre as nossas próprias percepções enquanto líder.
Como superar essas dificuldades?
Apresentamos duas dificuldades que ajudam porque pessoas frequentemente perdem chances de desenvolver liderança como um talento de Gagné, mas essas dificuldades podem ser superadas. Aqui vão algumas dicas para você combate-las e se tornar um líder com mentalidade para o crescimento.
Crie uma persona para seu mindset fixo
Ninguém é capaz de performar com um midset de crescimento 100% do tempo; somos todos uma mistura dos dois tipos de mindset.
Podemos, porém, aprender a reconhecer o mindset fixo e trabalhar progressivamente em substituí-lo pelo de crescimento. Para tanto, é possível criar uma persona para seu mindset fixo.
Basta escolher um nome para a persona (pode ser o nome de alguém que você não admira, por exemplo) e buscar observar quando e como essa persona assume o controle.
O primeiro passo é encontrar os gatilhos do mindset fixo.
Em que circunstâncias você permite que esse tipo de mentalidade seja a predominante?
Por exemplo, é possível observar as situações em que as pessoas ao seu redor decidem assumir riscos, mas você opta em não engajar na atividade. Competições, lugares públicos e presença de especialistas podem ser gatilhos de mindset fixo.
Posteriormente, explore e interrogue a persona. Reflita sobre o que você pensa e sente nos momentos em que o mindset fixo assume o controle.
Após entender o que passa em sua cabeça nesses momentos, confronte esses pensamentos com pensamentos de mindset de crescimento.
Por exemplo, se após um projeto malsucedido sua persona diz “você não é bom o suficiente e decepcionou todos ao seu redor”, você pode confrontá-la com pensamentos do tipo “que bom você teve a oportunidade de falhar e aprender agora e não em circunstâncias de maiores riscos; agora você já sabe o que mudar para entregar um resultado melhor na próxima vez”.
Mantenha um diário
Autorreflexão é chave para o auto melhoramento.
“Manter um diário pessoal em uma análise e avaliação aprofundada de suas experiências é uma atividade de alta alavancagem que aumenta a autoconsciência e aprimora todas seus esforços e a sinergia entre eles” ~ Stephen Covey
A jornada de aprender liderança é longa e um diário é uma ótima forma de registrar seus desafios e seu progresso.
Ao final de seus dias, escreva sobre os momentos em que o mindset fixo assumiu controle e sobre estratégias para superá-lo. Escreva sobre as oportunidades de influenciar pessoas positivamente que você deixou passar e sobre compromissos para o dia seguinte.
Um diário te impede de operar no piloto automático e diminui suas chances de optar pelo conforto de ficar parado.
Monte seu próprio Conselho de Líderes
Com certeza, você possui uma lista de grandes líderes que você admira, desde familiares até figuras históricas, mas você já parou para pensar no porquê dessa admiração?
Liderança, na prática, é traduzida em comportamentos recorrentes.
Nomeie um “Conselho” com os principais líderes que você admira. Depois, tente encontrar o porquê: quais foram/são as ações e comportamentos que te fizeram admirar essas pessoas? Registre as respostas em seu diário.
Pronto, agora você tem uma lista de práticas exemplares de liderança que faz sentido para você.
O próximo passo e trabalhar ativamente para integrar essas práticas e comportamentos em sua vida, dia após dia.
Crie e valorize as suas Metas de Desenvolvimento
Como estamos falando de criação de um talento, na linguagem de Gagné, estamos falando, também, de Processos de Desenvolvimento: os processos de aprendizado e prática que ajudam na expansão de aptidões.
Você pode criar metas para seus Processos de Desenvolvimento.
Sabe aquelas resoluções de ano novo? Então, elas geralmente constituem Metas Pessoais, Profissionais ou de Lazer.
Metas de Desenvolvimento são objetivos específicos que podem contribuir diretamente para seu processo de aprendizado e podem ser integradas às outras metas mais comuns.
Por exemplo, uma meta desse tipo pode ser “fazer N cursos sobre liderança no ano” ou “fazer uma viagem solitária de autoconhecimento”. Grandes líderes são protagonistas de seu aprendizado e valorizam suas Metas de Desenvolvimento tanto quanto todas as outras.
Peça feedbacks proativamente
A clareza de sua percepção de si é só parte seu autoconhecimento.
É necessário buscar, também, o que Tasha Eurich chama de autoconsciência externa.
Ela está relacionada à clareza sobre a percepção que os outros têm de você.
Grandes líderes adquirem autoconsciência externa pedindo feedbacks proativamente para as pessoas que estão a seu redor.
Fazer a pergunta “como eu posso ser um melhor líder para você?” para diferentes pessoas te dará insights de onde e como você pode melhorar que você nunca conseguiria sozinho.
“Não importa o quão difíceis sejam seus problemas, a chave para superá-los não está em mudar suas circunstâncias. Está em mudar a você mesmo. Isso em si é um processo e começa com o desejo de se colocar como um aprendiz.” ~ John C. Maxwell
Acredita que o Desenvolvimento de Lideranças é um desafio que sua equipe precisa enfrentar? Então clique aqui e confira agora o artigo em que explicamos como desenvolvemos líderes na prática e colha alguns insights para a sua organização!
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